Sim, foi a quarta vez e conseguiu ser diferente. Decidimos sair cedo para evitar o calor, achando como sempre que a fila é só para os outros. Foram horas a fio de carro em soluços, com 40º graus à sombra, infelizmente sem muita sombra no caminho. É preciso ter calma pois tudo se faz com umas cervejas, uma bela garrafa de gin e uns vizinhos simpáticos que partilham o gelo que trouxeram de um centro urbano qualquer.
Este ano decidimos que iríamos fazer um camping de luxo, longe de sabermos o que isso implica. Alguém do grupo disse que levava uma pérgula (ninguém sabia o que era uma pérgula mas ficámos todos a saber) uma amiga trouxe um duche portátil, outro uma melancia e eu, e pela primeira vez, um colchão insuflável de casal (repare-se que fui sozinha mas queria dormir à larga) que naturalmente tinha que ser despachado com um edredom do mesmo tamanho. Ou seja, foram duas idas ao carro feitas em 3 horas, carregados que nem uns escravos do Egito, cada um com as pedras de Gizé que iam caindo ao longo do caminho e causando alguma pena aos demais já instalados.
Assim que chegámos ao recinto, de mãos cortadas e costas arrasadas, horas e horas depois e ainda com coisas no carro, lá encontrámos um sítio decente, perto do Hospital, não fosse alguém precisar de socorro imediato, nada de muito anormal na terra dos lacraus e das assaduras.
Como sou uma rapariga de sorte em situações de crise, e já de ombro dorido depois de tanto acartar, a bomba que encheu todos os colchões resolveu não encher o meu. Aplicadores e cenas úteis que habitualmente desprezo, obviamente trouxeram à tona o meu lado mais irresponsável.
Por outro lado, a tenda que pedi emprestada, e que lancei ao ar com toda a firmeza, tinha passado a ser o habitat natural de uma aranha branca, enorme, que perdi de vista e que me fez transitar para a tenda de alguém que ainda não tinha chegado e que só pedira para guardar lugar. Temos pena, quem chega primeiro escolhe a tenda sem aranhas. Sem gestão para tanta informação à chegada, lá me consegui instalar de colchão vazio e assim se passou uma noite inteira de lombar colada à pedra e sono posto no futuro.
Welcome to Survivor – Ninguém disse que ia ser fácil, Diva.
A manhã seguinte foi mais feliz, já tinha saudades. A Boomland está mais bonita e arranjada, com novas instalações, um Dance Temple de sonho, uma barragem incrível, que durante dois dias permite mergulhos de boca semi aberta, gente bonita com estilos tão diferentes, vinda de todo um Mundo onde aparentemente ninguém trabalha das 9h às 17h.
Só quem passa pela experiência percebe o que digo. Acordar ali (nos primeiros dias, atenção) é uma sensação de liberdade, como se nada mais importasse. Naquela herdade tudo brilha. As pessoas, loucas por poderem estar sem rotina, entoam gritos de saudação ao Sol, numa espécie de histerismo shanti que mal compreendo mas respeito. Vou pela Música, pela Amizade e para que não me telefonem durante uma semana.
No seio de todo este Mundo estavam homens e mulheres exóticos, que vivem vidas bem diferentes da minha e que me suscitam tanta curiosidade. Homens lindos e elegantes, despidos de preconceitos, às vezes só cobertos por lama e que vibram certamente em poliamor. Eu estive o tempo todo a olhar para eles em poliemoção mas infelizmente não sou o target destes queridos. Cheiram o meu gel de banho mainstream da Nuxe à distância e nem valorizam o meu palminho de cara.
De todas as pessoas que vi ressalvo o Brad Pitt do trance. Homem alto, aparentemente amável, de rastas louras e dentição branca (lá porque somos freaks não significa que não possamos ser modelos) sorria de volta a toda a gente que lhe sorrisse. Envolto em trajes dignos de quem vive algures na floresta, sempre a meter inveja ao Adão mas com as vacinas em dia, queimava serenamente algo entre as pernas cruzadas assentes no chão. Pensei desde logo que estivesse a fumar qualquer coisa xamânica mas diz que já se deixou dessas coisas e estava só a queimar pau santo em prol de um “trabalhinho” gratuito de limpeza a toda uma pista de dança. Bem preciso. Obrigada fofo.
Apesar de ser indiscutível a magia do Festival, o Boom podia muito bem chamar-se o Desespero da Água. Qualquer que seja o detentor de um borrifador funcional, que custe mais do que 6€, ali tem direito a trinta novos amigos. Cambada de falsos e secos. Todos os pontos de água potável espalhados pelo recinto estavam rodeados por sedentas pessoas de lenços na mão e bocas abertas em completo desespero por aquele que é o bem mais essencial da vida.
Parecia a cena dos leprosos que conta a Bíblia mas, no lugar de Jesus, temos um simplório pilar que cospe água através de umas singelas torneiras. Sabendo que a escassez da água é um tema global, diria que neste festival é um problema muito particular a resolver.
Por esse motivo deixo aqui um apelo à organização:
Mais solidariedade por favor.
Pedir 1,80€ por uma lata de água, sim, uma LATA de água, não é simpático. Tenho a certeza que a Mother Earth se soubesse disto dava uma palmada a cada um.
As latas são caras e contam com um branding curioso que se assemelha ao da Nívea mas só que, em vez de hidratarem a pele, hidratam a pessoa que pode pagar esta fortuna. Contudo, e porque sou uma pessoa positiva que não passa a vida a falar mal das coisas, estou crente que os 1000€ que gastei em água vão culminar numa Deusa Hindu em grande escala, feita com a referida matéria, possivelmente uma criação da Joana Vasconcedélica, numa próxima edição. Fica a dica.
Ainda no Desespero da Água, felizmente encontrámos um amigo que foi contratado para pertencer ao grupo logo no primeiro dia em que foi avistado. Contrato digno e efetivo mas só para quem merece. Este grande, grande querido que transborda alegria, e que pensa realmente nas coisas que interessam, deixou uma nota preta na Decathlon e investiu em objetos importantes como um gallon, 4L de água fresca durante 48h, uma lanterna de cabeça tal Bob o Construtor – versão psicadélica e muito, muito mais itens organizados numa mochila digna e respeitável. A única que vi nesta edição.
Lá está, uma pessoa inteligente que não gastou as fichas todas em tops de crochê, como eu, para acabar sempre enrolada num lenço da Parfois de 3,99€. É difícil ter estilo no Inferno em Bikini. No segundo dia já estava a mandar vir um batom de cieiro de Lisboa, através de um querido amigo, pois já lambia de 5 em 5 segundos uma boqueira sexy que me acompanhou o festival todo.
Porque pareço uma velha, eu sei, e já não andei lá a experienciar aquilo que já vi muitas vezes, dou importância a coisas simples como: bem comer. Come-se bem por lá. Eu sou menina para estar a comer um caril às 9h, sem medos nem grandes cerimónias.
A comida por lá nunca foi má mas este ano está para lá de carota. Qualquer prato, com qualquer coisa, custa 9,50€. É preciso entender que este é um festival pensado para pessoas de todo o mundo e que o português, de facto, já não é pobre só lá fora.
“Seja pobre, cá dentro” – diz em segredo o Boom Festival ao miserável trabalhador de classe média que teve a infelicidade de nascer alfacinha e o azar de, como os outros, gostar de andar descalço, dançar trance e perder a cabeça (ou uma parte dela).
Importante é admitir que as coisas no geral estão todas mais caras e que trabalhar ali também não deve ser fácil. Já o dizia uma amiga linda que pertencia ao staff e achava que ia servir uns “cafézinhos” e uns “bolinhos”, visto o seu último Boom ter sido em 2006.
Acabou a servir 150 frapuccinos/hora a uma fila que dava a volta ao Alive mas feliz, porque ela é rija.
Para finalizar, quem não conhece o Boom Festival não fica a saber nada de novo com este belo texto. Não fui a uma aula de Yoga, não marquei presença em nenhuma terapia holística e, desta 4a vez, já nem à Galeria de Arte.
Tristeza, eu sei, mas com tantos kms a dançar não dá para tudo.
Namasté migas,
Love,
D.