Maria Idolinda, de nome peculiar e tão adequado à sua singela fisionomia, não alcança um metro e cinquenta de altura, apesar de ser uma mulher extremamente “elevada” como refere habitualmente sobre si mesma, sem grandes modéstias. Tem 81 anos, um corpinho de 65 e uma cabeça de 30.
Mariazinha, como os conhecidos do bairro a tratam, diz-me coisas incríveis como “Se soubesse o que sei hoje, nunca me tinha casado com o primeiro” ou “Imaginas-me num lar de velhos a fazer desenhos com lápis de cera?” ou ainda “Tu és linda mas esse cabelo não lembra a ninguém, não dá para esticares isso, filha?”
Respondo-lhe sempre (mas sempre) que de “peruca” alisada pareço um rato à chuva mas ela não compreende as minhas motivações e fica para lá de revoltada. No fundo, apesar de duros, eu valorizo bastante estes seus inputs. Demonstra que vê em mim um imenso potencial por explorar. Potencial este onde o cabelo toma uma importância absolutamente fulcral. Ela lá terá os seus motivos…
Por outro lado, também é mulher para me dizer, com olhar de quem finalmente acabou de compreender a teoria da relatividade:
“És de uma classe e de uma inteligência extrema, filha.”
Assim do nada. Tau!
Fico toda vaidosa e inchada.
Mas, egos alimentados por avós à parte, vamos ao que interessa.
No outro dia, estava eu num jantar de aniversário de um amigo, bebendo um vinho branco fresquinho e mordendo um porco agri-doce quando, de repente, percebo que tenho uma chamada sua não atendida por volta das 23h50.
Estranhei a hora tardia, naturalmente, e no imediato devolvi o telefonema mas sem sucesso.
Sei que, pelo menos até às 23h, Mariazinha relaxa no seu colchão que lhe custou uma fortuna, e por ali fica a ouvir o “Culto” que passa diariamente na sua estimada rádio evangélica. Estação complicada de permanecer na frequência certa visto que, à mais ligeira brisa que incentive a antena para a esquerda, já a fiel ouvinte se vê obrigada a girar o botão durante horas, em pânico, e a pensar que perdeu para sempre a “palavra de Deus” na espiral das ondas eletromagnéticas.
No momento em que, já jantados, todos se organizavam para um copo no Bairro Alto, eu fervia de preocupação a pensar no pior que podia ter acontecido à minha baixinha. Mas como é que ela me liga a uma hora destas e passados 10 minutos já não atende?!
“Sentiu-se mal, ligou-me em desespero e caiu para o lado” – disse alto.
Neste estado de ansiedade não havia nada que me pudesse divertir e, assim que vi um táxi, fui direitinha à sua casa. A minha querida Diva Loira resolveu acompanhar-me, não só porque me conhece e percebeu que estava realmente apoquentada, mas também porque é fã desta castiça.
Chegadas à porta de sua casa, incumbi o meu indicador nervoso de pressionar o botão do seu andar, como se estivesse a carregar pela minha vida. Mas nada. Acordei o prédio todo. Vizinhas da sua idade, incomodadas com o som ensurdecedor daquele toque digno de prédio com mais de 100 anos, vinham curiosas à janela. As minhas mãos já transpiravam e os meus olhos reviravam até que o meu inconsciente me lembrou:
“Espera, ela deu uma chave ao vizinho que vive na cave…”
Depois de nos deixarem entrar no prédio, fui bater à porta do senhor, como se estivesse a encarnar um polícia de intervenção. Lá veio o vizinho, de boxers, tronco nú e cara de quem não gosta de ser acordado. Percebe-se. Primeiro não me queria dar a chave, coitado estava a dormir em pé e não percebia nada do que o rodeava. Mas depois, perante o meu nervosismo e inação, a minha Diva Loira lá lhe deu um berro e ele finalmente passou “o anel” para o nosso lado.
Já com as chaves a tilintar nas mãos, subi as escadas e finalmente bati com as pontas dos pés na porta da minha querida avó. Ainda toquei à campainha novamente mas mais uma vez… Nada.
Respirei fundo, fiz de mim invasora e, de mãos trémulas, entrei.
A minha companheira de sempre ficou para trás. Quis dar-me alguma privacidade num momento em que ela própria já temia o pior.
Após 5 lentos passos já estava no seu quarto. No escuro, via o seu corpo estendido na cama imóvel. Não ouvia a sua respiração e passei a sentir o frio digno do psicológico que interfere com a atmosfera.
A medo, finalmente sussurrei:
“Vó…Acorda…!”
N-A-D-A.
Aproximei-me dela, já apavorada com o que podia acontecer e gritei (confesso que já a chorar…)
“VÓ!!!” ACORDA, FODA-SE!!!”
Saiu-me em total desespero.
O que é certo é que, finalmente, a Diva Mor virou o seu tronco muito calmamente, olhou para mim de olhos sonolentos e disse:
– “Ai filha, és tu… ? Olha, ainda bem que apareceste. Precisava mesmo de falar contigo”.
E realmente precisava, coitada. Tinha uns sapatos novos incríveis para me mostrar e portanto até lhe deu jeito que lá passasse, imaginem.
Ainda achou um pouco ridícula a minha preocupação.
“As pessoas quando dormem profundamente não ouvem campainhas, filha…”
Enfim, ia morrendo de susto.
Love,
D.